Artigo

Viagem de ida

Em pé escuto das minhas pernas um pedido comovente de clemência...

Em pé escuto das minhas pernas um pedido comovente de clemência.
Lembro a elas que odeio perder. Exijo delas toda a superação imaginada. Que busquem a última resistência e fiquem firme. Elas sempre acabam concordando.
Em minha frente cabeças alinhadas em tamanhos diversos lembram o traçado de um eletrocardiograma. 
O barulho polui sonoramente o ambiente. Batem em meu ombro. Pedem-me um troco.
Finjo não perceber. Disfarço olhando o infinito como se estivesse extremamente concentrado. Pelo canto dos olhos percebo que ele me olha por alguns segundos e vai.
Mais ao fundo da fila um homem reclama da espera em voz alta. Sinto vontade de ir lá dar um sopapo em sua orelha. Tanto barulho e ainda um idiota gritando. Em minha frente duas mulheres alheias a tudo falam sobre a noite passada.
Quando olho para cada rosto sinto diferentes angustias. Expressões de todos os tipos. Risos, seriedade, ânsia, tranquilidade...
O ser humano e suas diversidades tão presentes no dia a dia.
O malandro oportunista chega e vai oferecendo doces. Outro oferece relógios. 
Do bar ao lado risos descontrolados de bêbados animados.
Na escada de acesso a matriz um sujeito com pinta de quem vive pelas ruas canta alguma coisa que seria engraçado se não fosse a única forma dele chamar a atenção e de ser visto por uma sociedade que o torna invisível. 
- Com ela encontrei meu inferno quando busquei o paraíso. 
É só o que consigo entender. O suficiente para me fazer lembrar uma música triste de Eric Clapton que tem um verso meio parecido:
- Você saberia o meu nome se eu te visse no paraíso? (Tears In Heaven)
Um pouco à frente da escada um homem baixo, de terno preto, tem uma bíblia nas mãos, mas parece não se importar com o cantor da escada. Permanece ali, estático e indiferente.
O sol agora se escondeu atrás dos prédios, apenas uma réstia entre o Teatro e a Academia de letra ainda pode ser vista.
Um celular toca. 
Demoro a conseguir ver de que altura da fila surge o alô mais alto que alguém já falou.
Todos ali agora sabem que o Mateus está melhor, era impossível não ouvir o gritão ao telefone.
O cantor da escada continua tentando:
-Todos os sonhos que plantei, nenhum nasceu, Ah!  Meu sonho nunca floresceu.
Esqueci meu lugar na fila e fui abraçar o cantor anônimo.
Talvez o mais acolhedor abraço que já recebi. Entendi envergonhado naquele instante que temos que ser muito mais amantes dos nossos semelhantes.
A fila andou. E daí. Volto e fico no final dela.
Nunca saberei se minha viagem tem volta. Por enquanto aguardo só a ida, e o ônibus ainda não chegou.
(Interlúdios)

Escrito por:

MOACIR LUÍS ARALDI

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